Como escrever uma crônica?


Um dos gêneros da narrativa na qual podemos identificar a apresentação de acontecimentos, sem que haja a elaboração e o aprofundamento encontrados em uma narrativa, é a crônica.


A origem da palavra crônica é grega e vem de chronos (tempo). É por esse motivo que uma das características definidoras desse gênero é o seu caráter contemporâneo. De modo bastante direto e simplificado, a crônica pode ser apresentada como um texto no qual encontramos o relato de fatos contemporâneos, a partir dos quais um autor desenvolve reflexões mais genéricas sobre a questão principal a eles associada.
Gênero híbrido que oscila entre a literatura e o jornalismo, a crônica é o resultado da visão pessoal, subjetiva, do cronista diante de um fato qualquer, colhido no noticiário do jornal ou no cotidiano. Quase sempre explora o humor; às vezes, diz as coisas mais sérias por meio de uma aparente conversa fiada; outras vezes, despretensiosamente, faz poesia da coisa mais banal e insignificante.
Registrando o circunstancial do nosso cotidiano mais simples, acrescentando, aqui e ali, fortes doses de humor, sensibilidade, ironia, crítica e poesia, o cronista, com graça e leveza, proporciona ao leitor uma visão mais abrangente, que vai além do fato; mostra-lhe, de outros ângulos, os sinais de vida que diariamente deixamos escapar da nossa observação.

A crônica é um dos mais antigos gêneros jornalísticos. No Brasil, surgiu há uns 150 anos, com o Romantismo e o desenvolvimento da imprensa.
A princípio, com o nome de folhetim, designava um artigo de rodapé escrito a propósito de assuntos do dia - políticos, sociais, artísticos, literários. Aos poucos, foi se tornado um texto mais curto e se afastando da finalidade de informar e comentar, substituída pela intenção de apresentar os fatos do cotidiano de forma artística e pessoal. Sua linguagem tornou-se mais poética, ao mesmo tempo em que ganhou certa gratuidade, em razão da ausência de vínculos com interesses práticos e com as informações veiculadas nas demais partes de um jornal.
De seu surgimento aos dias atuais, a crônica ganhou prestígio entre nós e pode-se até dizer que constituí um gênero brasileiro, tal a naturalidade e originalidade com que aqui se desenvolveu. Entre os muitos escritores que se destacam como autores de crônica estão Machado de Assis, Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade, Cecília Meireles, Rubem Braga, Fernando Sabino, Paulo Mendes Campos, Rachel de Queiroz, Lourenço Diaféria, Luis Fernando Verissimo, Marcos Rey, Mário Prata.

A crônica pode receber diferentes classificações, dependendo do tema por ela desenvolvido. Assim, fala-se da crônica mundana (trata de fatos ou acontecimentos característicos de uma sociedade), lírica (expressão de um estado de espírito do cronista), filosófica (reflexão a partir de um fato ou evento), humorística (visão irônica ou cômica dos fatos apresentados) e jornalística (apresentação periódica de aspectos particulares de notícias ou fatos; pode ser policial, esportiva, política, etc.).
Veja um exemplo de crônica que pode ser definida como mundana, porque seu autor enumera uma série de fatos desagradáveis que, cotidianamente, nos fazem perder o bom humor.

Desabafo
João Emanuel Carneiro
Veja/RJ, 11 set. 2002.

"Desculpem-me, mas não dá pra fazer uma cronicazinha divertida hoje. Simplesmente não dá. Não tem como disfarçar: esta é uma típica manhã de segunda-feira. A começar pela luz acesa da sala que esqueci ontem à noite. Seis recados para ser respondidos na secretária eletrônica. Recados chatos. Contas para pagar que venceram ontem. Estou nervoso. Estou zangado.
É preciso denunciar os crimes que a vida moderna comete contra a criatura humana. Lembrei-me de uma crônica dos anos 60 do Paulo Mendes Campos, "Coisas abomináveis". Ele lista as violências cometidas contra o pobre bicho-homem, da vacina antivariólica à "moça que não sabe que mulher só pode falar um palavrão por semana". Mas é preciso atualizar a lista das coisas abomináveis. Aqui vai meu grito de guerra.
Os reality shows. Ficar ouvindo conversa de gente que comenta os reality shows. Ir a um restaurante e sentar à mesa ao lado de seres que participaram de reality shows. Chegar em casa e reparar que só tem um recado na secretária eletrônica no domingo. O recado é de alguém querendo vender plano de saúde. Fila pra pagar estacionamento em shopping center. Shopping center. Praça de alimentação em shopping center. Boleta bancária. Carnê do IPVA e do IPTU. Gente que fura a fila. Engarrafamento em São Paulo. Engarrafamento naquelas ruazinhas de Botafogo. Motorista que enfia o carro na sua frente. Motorista que rouba a sua vaga. Motorista que rouba a sua vaga, você xinga e depois reconhece: é o seu psicanalista. Aliás, motoristas em geral. Aliás, carros em geral. Estacionar perto do Municipal e ser imediatamente abordado por um guardador de carro que já vai falando "é vinte". Ligar pra companhia aérea pra fazer uma reserva e ficar vinte minutos ouvindo uma musiquinha. Preencher formulário do imposto de renda. Fila de repartição pública. Funcionário que repete que o expediente acabou e que é pra voltar no dia seguinte. Gerente de banco que quando você pergunta se o dólar vai subir ele responde que "pode baixar, subir ou continuar no mesmo patamar". Acampar em Mauá com chuva. Gente que fuma o último cigarro de seu maço. Gente que tira o cigarro aceso de sua mão. Amigo que vive pedindo cigarro. Descobrir que a sua caixinha de correio está cheia de cartas do tipo "Parabéns! Você tirou a sorte grande! Foi sorteado e acaba de ganhar um desconto único de 10% na compra à vista..." de um carro que custa mais que um apartamento. Ligar o computador e ficar uma hora na internet pra pegar as mensagens de campanha eleitoral dos candidatos mais estapafúrdios. Sair pra fazer compras no supermercado e dar de cara com a ex-mulher, o ex-marido, o ex-amigo ou o ex-qualquer coisa. Esquecer o celular no bar. Perder a carteira. Perder a chave de casa. Ir ao dentista. Conta de dentista. Jornal largando tinta. Meia molhada.
Chega! Na próxima crônica, prometo escrever sobre as coisas maravilhosas da vida no planeta. E obrigado por ouvirem o meu desabafo."

Outras crônicas:

A última crônica
Fernando Sabino

"A caminho de casa, entro num botequim da Gávea para tomar um café junto ao balcão. Na realidade estou adiando o momento de escrever. A perspectiva me assusta. Gostaria de estar inspirado, de coroar com êxito mais um ano nesta busca do pitoresco ou do irrisório no cotidiano de cada um. Eu pretendia apenas recolher da vida diária algo de seu disperso conteúdo humano, fruto da convivência, que a faz mais digna de ser vivida. Visava ao circunstancial, ao episódico. Nesta perseguição do acidental, quer num flagrante de esquina, quer nas palavras de uma criança ou num acidente doméstico, torno-me simples espectador e perco a noção do essencial. Sem mais nada para contar, curvo a cabeça e tomo meu café, enquanto o verso do poeta se repete na lembrança: "assim eu quereria o meu último poema". Não sou poeta e estou sem assunto. Lanço então um último olhar fora de mim, onde vivem os assuntos que merecem uma crônica.
Ao fundo do botequim um casal de pretos acaba de sentar-se, numa das últimas mesas de mármore ao longo da parede de espelhos. A compostura da humildade, na contenção de gestos e palavras, deixa-se acrescentar pela presença de uma negrinha de seus três anos, laço na cabeça, toda arrumadinha no vestido pobre, que se instalou também à mesa: mal ousa balançar as perninhas curtas ou correr os olhos grandes de curiosidade ao redor. Três seres esquivos que compõem em torno à mesa a instituição tradicional da família, célula da sociedade. Vejo, porém, que se preparam para algo mais que matar a fome.
Passo a observá-los. O pai, depois de contar o dinheiro que discretamente retirou do bolso, aborda o garçom, inclinando-se para trás na cadeira, e aponta no balcão um pedaço de bolo sob a redoma. A mãe limita-se a ficar olhando imóvel, vagamente ansiosa, como se aguardasse a aprovação do garçom. Este ouve, concentrado, o pedido do homem e depois se afasta para atendê-lo. A mulher suspira, olhando para os lados, a reassegurar-se da naturalidade de sua presença ali. A meu lado o garçom encaminha a ordem do freguês.
O homem atrás do balcão apanha a porção do bolo com a mão, larga-o no pratinho - um bolo simples, amarelo-escuro, apenas uma pequena fatia triangular. A negrinha, contida na sua expectativa, olha a garrafa de Coca-Cola e o pratinho que o garçom deixou à sua frente. Por que não começa a comer? Vejo que os três, pai, mãe e filha, obedecem em torno à mesa um discreto ritual. A mãe remexe na bolsa de plástico preto e brilhante, retira qualquer coisa. O pai se mune de uma caixa de fósforos, e espera. A filha aguarda também, atenta como um animalzinho. Ninguém mais os observa além de mim.
São três velinhas brancas, minúsculas, que a mãe espeta caprichosamente na fatia do bolo. E enquanto ela serve a Coca-Cola, o pai risca o fósforo e acende as velas. Como a um gesto ensaiado, a menininha repousa o queixo no mármore e sopra com força, apagando as chamas. Imediatamente põe-se a bater palmas, muito compenetrada, cantando num balbucio, a que os pais se juntam, discretos: "Parabéns pra você, parabéns pra você..." Depois a mãe recolhe as velas, torna a guardá-las na bolsa. A negrinha agarra finalmente o bolo com as duas mãos sôfregas e põe-se a comê-lo. A mulher está olhando para ela com ternura - ajeita-lhe a fitinha no cabelo crespo, limpa o farelo de bolo que lhe cai ao colo. O pai corre os olhos pelo botequim, satisfeito, como a se convencer intimamente do sucesso da celebração. Dá comigo de súbito, a observá-lo, nossos olhos se encontram, ele se perturba, constrangido - vacila, ameaça abaixar a cabeça, mas acaba sustentando o olhar e enfim se abre num sorriso.
Assim eu quereria minha última crônica: que fosse pura como esse sorriso."

Crônica sem jabuticabas
Antonio Prata

"Estava sentado no fundo do ônibus vazio. Dia ensolarado, trânsito livre, uma brisa amena e improvável lambia a cidade de São Paulo. Férias, dentro e fora de mim. Meus pensamentos iam tão soltos e distantes que já haviam rompido o fino fio que os ligava à minha cabeça: se me perguntassem por onde andavam, não saberia dizer. Foi então que surgiu diante de mim a idéia, nítida e apetitosa: jabuticaba. Há quanto tempo eu não comia uma jabuticaba?
Em poucos quarteirões, passei da distração à obsessão: tinha que comer jabuticabas. Fiquei lembrando da infância na fazenda de um amigo, tardes e tardes no pomar, a árvore cada vez mais branca e o chão cada vez mais preto com as dezenas de cascas espalhadas...
Desci do ônibus na frente de um supermercado. Entrei na enorme loja fazendo um discurso interno sobre as maravilhas da modernidade, todos aqueles itens à minha disposição, num único local: pasta de dentes, suco de caju, tampa de privada, moela de frango, pilhas alcalinas, bacias coloridas, maracujás... Morangos... Mangas... E as jabuticabas???
Pedi ajuda a um funcionário que passava por ali. Ele me olhou como se meu pedido fosse absurdo, uma excentricidade. Pegou então um radinho e, depois de um breve chiado, soltou: "ô Anderson, você sabe se a gente tem jabuticaba?". Do outro lado o tal do Anderson respondeu, depois de algum suspense: "Negativo, Jailson, negativo". Jailson olhou para mim, com certa consternação (não sei se calculada ou sincera) e repetiu, como se eu não tivesse ouvido: "Negativo, senhor".
Supermercado inútil, repleto de coisas inúteis, nenhuma delas jabuticaba. Saí. Andei alguns quarteirões, achei uma quitanda. Nada por ali também. "Você sabe se eu encontro em algum lugar por aqui? Sabe se é época? Se tem algum mês do ano, assim, que tem jabuticaba e outros que não tem?". "Olha moço, sei lá, comecei a trabalhar aqui anteontem..."
Fui para casa. Já mais movido pela birra que pelo desejo, vasculhei na internet as prateleiras de todas as redes de supermercados da cidade. Nada. Não havia, na quarta maior metrópole do mundo, na cidade mais rica da América do Sul, uma única, uma mísera jabuticaba. Se naquele exato momento eu quisesse comprar uma máquina industrial de lavar roupas, um quilo de maconha, um caminhão-pipa, sexo, pastilhas importadas para dor de garganta, três peixinhos dourado, sexo sadomasô, um DVD do Julio Iglesias cantando em Acapulco, eu poderia.Mas não queria. Queria jabuticabas.
Naquele instante, o homem ter ido à Lua. Ter clonado uma ovelha, pintado a Capela Cistina, inventado a penicilina, o avião, a pipoca de microondas e todas outras conquistas da civilização... não me valiam de nada, na monumental e incontornável ausência da jabuticaba."


COMO AVALIAR SUA CRÔNICA: 

Observe se a crônica apresenta uma visão pessoal do assunto escolhido; se nela há os elementos narrativos básicos; se o texto ficou curto e leve; se ele diverte e/ou promove uma reflexão sobre o assunto; se a linguagem empregada é adequada ao gênero e ao contexto.